sábado, 5 de março de 2011

A FÁBULA-MITO DO CUIDADO - (Fábula de Higino)

"Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve uma idéia inspirada. Tomou um pouco de barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter.
Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado.
Quando, porém Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome.
Enquanto Júpiter e o Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra. Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da terra. Originou-se então uma discussão generalizada.
De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu justa:
"Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura. Você, Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer. Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro, moldou a criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver. E uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil".

São quatro os personagens deste mito: Júpiter, Saturno, Terra e Cuidado. Na mitologia, Júpiter: é o deus-rei de todos os deuses; Saturno: é pai de Júpiter, era o deus do Tempo, da Abundância e da Igualdade entre os homens; Terra: a deusa-mãe, era a mãe de Júpiter e de vários outros deuses, representava as origens, a força de vida original no mundo; e Cuidado: era uma entidade comum—não era uma deusa nem semideusa.

Higino: escravo egípcio de César Augusto, depois diretor da Biblioteca Palatina em Roma e autor da fábula-mito do Cuidado essencial. O grande poeta Ovídio (43AC a 17DC) era seu amigo intimo. O próprio Virgilio (70AC a 19DC), considerado maior poeta latino foi seu aluno. Morreu no ano 10 de nossa era.

O cuidado é tão importante para a vida humana e para a preservação de todo tipo de vida, que deu origem a uma fabula-mito. Foi personalizado, virou um ser concreto. Como tal, o Cuidado molda a argila. Conversa com o céu (Júpiter) e a Terra (telus), a historia e a utopia(saturno) .
Ela recolhe ainda uma experiência testemunhada em muitas culturas do ocidente e do oriente: a criação do ser humano a partir do barro da terra, plasmada a partir do húmus, que significa terra fértil. De húmus deriva seu nome: homem, filho e filha da terra fecunda (húmus), como o relato bem diz. Algo semelhante sinalizam os dois primeiros capítulos do gênese: adão é feito do barro da terra. A palavra hebraica para terra é ADAMAH. De ADAMAH vem adan que significa o filho e a filha da terra.
O ser humano não pode ser interpretado apenas a partir da Terra (Tellus). Ele possui algo do céu, do divino (Júpiter). Por isso o relato conta que esse barro não permaneceu inerte. Recebeu da divindade o principio de vida, o espírito. Só, então, é ser humano completo. É Júpiter a divindade suprema, que lhe infunde espiritualidade.

O CUIDADO COMO UM MODO DE SER ESSENCIAL:

Do ponto de vista existencial, o cuidado se acha a priori, antes de toda atitude e situação do ser humano, o que sempre significa dizer que ele se acha em toda atitude e situação de fato. Quer dizer, o cuidado se encontra na ríz primeira do ser humano, antes que ele faça qualquer coisa. E, se fizer, ela sempre vem acompanhada de cuidado e imbuída de cuidado. Significa reconhecer o cuidado como um modo-de-ser-essencial, sempre presente e irredutível à outra realidade anterior. É uma dimensão fontal, originária, ontológica, impossível de ser totalmente desvirtuada.
Um modo-de-ser não é um novo ser. É uma maneira do próprio ser de estruturar-se e dar-se a conhecer. O cuidado entra na natureza e na constituição do ser humano. O modo-de-ser cuidado revela de maneira concreta como é o ser humano.

Cuidar das coisas implica ter intimidade, senti-las dentro, acolhê-las, respeitá-las, dar-lhes sossego e repouso Cuidar é entrar em sintonia com, auscultar-lhes o ritmo e afinar-se com ele. A razão analítico-instrumental abre caminho para a razão cordial, a gentileza e o espírito de finesse, o espírito de delicadeza, o sentimento profundo. A centralidade não é mais ocupada pelo logos razão, mas pelo pathos sentimento.

Este modo de ser-no-mundo, na forma de cuidado, permite ao ser humano viver a forma fundamental do valor, daquilo que tem importância e definitivamente conta. Não do valor utilitarista, só para o seu uso, mas do valor intrínseco às coisas. A partir desse valor substantivo emerge a dimensão de alteridade, de respeito, de sacralidade, de reciprocidade e de complementaridade.

Todos nos sentimos ligados e religados uns com os outros, formando um todo orgânico único, diverso e sempre includente. Esse todo remete a um derradeiro elo que tudo religa, sustenta e dinamiza. Irrompe como Valor supremo que em tudo se vela e se revela.
Esse Valor supremo tem o caráter de Mistério, no sentido de sempre se anunciar e ao mesmo tempo se recolher. Esse Mistério não mete medo, fascina e atrai como um sol. Deixa-se experimentar como um grande Útero acolhedor que nos realiza supremamente. É chamado também Deus.

4 comentários:

Anônimo disse...

regina e o que entendemos com esse mito ?

Unknown disse...

Esse é um mito pra ler com atenção e depois com cuidado. Somente assim perceberá a sútil diferença da atenção e o cuidado. Cuidado com aceitação dos eventos vidouros. Cuidado com a humildade humana necessária à realidade terrena da unidade do ser em equilíbrio com todo absoluto. O Mito do cuidado na verdade é um alerta, um convite, um quê do imaginário, caminho onde o cuidado em cada passo nos leva á razão emocionante de existir nesse mundo misteriosamente fascinante.

Unknown disse...

Adorei esse rexto

Thais disse...

Que texto lindo.. Inspiradíssimo e inspirador. Grata!