O Sonho de Kabir
O  sufismo é um caminho para a auto-realização e espiritualidade através  da emoção e da sensibilidade. Para um sufi, sua sensibilidade é o seu  guia. Dessa maneira, o papel de um mestre sufi não é o de passar  determinados conhecimentos, mas o de tocar a inocência existente no  fundo do coração do aluno de maneira que ele passe a experimentar por si  mesmo as dimensões mais extraordinárias da vida, de maneira que ele  passe a sentir Deus dançando no coração e, a partir daí, toda a vida se  torne uma dança; de maneira que ele passe a escutar Deus dançando em seu  coração e toda a vida passe a ser uma melodia harmônica.
Dessa  maneira, o mestre sufi não costuma ser impositivo, mas sedutor. Um  mestre sufi não apresenta um conjunto de regras a ser seguido para que o  aluno se desenvolva, mas procura seduzi-lo, proporcionando ao aluno um  gosto da espiritualidade, uma amostra da experiência amorosa espiritual,  de modo que o aluno se mobilize por si só, com seus próprios meios,  para alcançar essa realidade. Ele não impõe disciplina, mas induz à  mobilização; ele não obriga o peixe a morder a linha, mas joga atraentes  iscas ao mar, ele não obriga a ninguém a comer de seu manjar, mas faz o  mel e espera que as abelhas venham por impulso próprio.
O sufi  evita o caminho das regras rígidas por que entende a vida como uma  sequência de surpresas e de mistérios que vão se revelando como flores  na primavera e voltam a se esconder como a seiva do carvalho se enterra  no inverno. Assim, ele entende que nenhuma regra concebida no passado  será capaz de responder totalmente à nova situação, mas que a  sensibilidade escondida no centro do peito será sempre capaz de dançar  com o novo momento, de responder às novas questões. Só ela.
Para o  poeta místico Kabir, sufi indiano de Benares do século XV, “a  espiritualidade não reside em templos, rituais, cerimônias e nem mesmo  nas mortificações dos iogues”, mas “o buscador sincero a encontrará  naturalmente” uma vez que essa espiritualidade é a “respiração de tudo o  que respira”. Kabir é um dos muitos expoentes da cultura sufi que  utilizou a poesia como maneira de induzir às sutilezas mais impensadas  do coração, ou pelo menos passou o gosto dessas experiências em sua  poesia. Ele era o próprio sabor e aroma do sufismo em suas atitudes e  versos; inebriava os que estavam à sua volta e os conduzia a espaços  onde todas as contradições eram dissolvidas e se experimentava “a mais  simples união”.
Kabir era emoção pura. Com isso não quero dizer  que ele era todos os tipos de emoções que conhecemos normalmente, um  turbilhão delas, condensado num único corpo; mas que a emoção vista nele  era pura como a água de uma fonte de bosque. E sua poesia da mesma  forma passava, cristalina, a fragrância dessa água. Uma fonte que sempre  vinha de dentro. “Não vás para o jardim florido! / Ó amigo! Não te  voltes para lá; / É em ti que se encontra esse jardim. / Escolhe teu  lugar entre as mil pétalas do interno lótus, / E contempla desse posto a  beleza infinita.”
Ao falar do lótus de mil pétalas, Kabir fala  de algo íntimo à cultura popular indiana, o lótus de mil pétalas, uma  representação simbólica do sétimo e último chakra, o da revelação final  da verdadeira natureza humana, o chakra que desperta na experiência da  dissolução do ego, no momento de encontro de nossa real identidade e do  fim de todas as ilusões, no momento em que, nas palavras de Kabir, todas  as contradições deixam de existir.
Mas, ao ouvi-lo falar de  jardins internos, não pense que Kabir era um escapista, alguém que  condenava ou evitava a vida, um sufi nunca o é. “Desde o dia em que  encontrei Deus, / não tem mais havido limite para o divertimento de  nosso amor / eu não fecho meus olhos, eu não tampo minhas orelhas / eu  não mortifico meu corpo; / eu vejo com olhos bem abertos e sorrio / e  observo a sua beleza em todos os lugares.” Sim, o sufismo é um caminho  includente. Há dois tipos de caminhos espirituais no mundo, os  includentes e os excludentes. Os excludentes são os caminhos  referenciados pelo “não” “não faça isso, que é pecado”, “não faça isso,  que Deus castiga” “não faça aquilo que é desonroso”; os caminhos da  espiritualidade baseados no “não” induzem sempre à culpa e ao  atrofiamento de nosso discernimento próprio. Os caminhos includentes são  aqueles que aceitam as experiências como elas são e que fazem sua arte a  partir delas. Os caminhos includentes, tratam de lidar com a realidade e  fazer dela uma trilha para a lucidez.
No entanto, não basta  aceitar a vida como ela é, se não aceitarmos nossa sede interior de  crescimento e de realização. Não estabeleceremos uma relação de  crescimento com a vida se imperar apenas a vida com ela é, se não  estivermos presentes nessa relação, se nossa parte mais legítima não  puder se manifestar nessa relação. Assim, a aceitação do sufi não é  apenas uma aceitação passiva da realidade externa que se impõe, mas uma  aceitação plena: do outro, de si, e da dança possível e inteligente  entre os dois. Uma aceitação do momento como possibilidade de  crescimento e revelação de sua identidade mais íntima. Afinal, de que  vale a vida se você não puder estar presente nela? E de que vale estar  presente se a pessoa nega a si mesmo o direito de usufruir do que vive?
A  aceitação para o sufi, deve ser total, incluindo aí o si mesmo. E ela é  o ponto de partida, mas não é tudo. “Não ouviste a melodia que a Música  não tocada espalha no ar? / Bem no centro da câmara, a harpa da alegria  soa com suavidade e doçura; / que necessidade tens de sair para  ouvi-la? / Se não bebeste o néctar desse Único Amor, / de que te servirá  purificar-te de toda a mácula?”. Sim, o sufi é uma escola espiritual  que não nega a vida mas, ao contrário, a eleva às suas mais instigantes  possibilidades. 
Kabir diz: “Não são os sacrifícios que  mortificam o corpo que agradarão o Senhor”...  “aquele que permanece  calmo em meio à agitação mundana, / que estima as criaturas da terra  como a si mesmo / Este obtém o Ser Imortal” “Aquele cujas palavras são  puras / e que libertou-se do orgulho e do preconceito / alcança o  verdadeiro Nome”.
Enfim, o caminho de Kabir se faz através da  experiência e não o da teoria, mas é um caminho que transforma a  experiência. E faz isso a partir da presença do coração. “As travas do  intelecto mantêm a porta fechada, / abre-a com a chave do amor, / ao  abrir a porta, despertarás a Consciência / Oh irmão! não deixes passar  uma oportunidade como essa.” Para Kabir, a vida, cada momento dela, é  uma oportunidade de revelar o amor e a sabedoria presentes na  existência. Através da força inerente que todos carregamos no peito. 
As  meditações contemporâneas sufis foram desenhadas com o intuito de  realizar o sonho de Kabir, o sonho de uma vida “onde reina a primavera,  senhora das estações, / e uma música soa por si mesma / Onde fluem  torrentes de luz em todas as direções; / Poucos são os homens capazes de  alcançar essas margens, / Onde milhões de Krishnas permanecem de mãos  postas, / Onde milhões de Brahmas lêem os vedas, / Onde milhões de  Shivas estão perdidos em contemplação... / Lá está meu Mestre  Auto-revelado: / e a fragrância de sândalo e de flores inundam aquelas  profundezas”.
Pedro Tornaghi
Artigo para o site http://pedrotornaghi.com.br
 
 
 
          
      
 
  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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